quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Blind Bolden Blues #11

    Era uma caminhada curta do pub The Pit até o apartamento. Sempre o The Pit. Ao chegar em casa, Jim tirou suas botas e meias, guardando-as cuidadosamente na sapateira ao lado da porta. Terceira prateleira, de baixo para cima. Dois pares, começando da esquerda, e ali estava o espaço vago para suas botas.
    A música continuava tocando no celular em seu bolso. Bolden se levantou, respirando fundo. Sete passos até a cozinha. Alcançou a caixa de madeira com muitos incensos dentro, cada tipo dentro de sua própria caixinha de papel. Rosas brancas, sândalo, jasmim, alecrim, canela, lavanda, arruda, flor de cerejeira, capim-limão, bambu, chá verde, tangerina. Olíbano. Era esse. O isqueiro, saído de seu bolso, acendeu tanto o incenso quanto seu Marlboro vermelho, mas apenas o cigarro acompanhou James até a sala de estar. 
    Não havia espaço para ardósia e caneta, mais uma vez. Sua mão se movia lentamente sobre a escrivaninha, guiando a ponta de grafite de sua lapiseira em muitos, muitos post-its, todos sendo descartados ao não satisfazerem as expectativas do cego homem.
    Todos, exceto um. Jim tateou a mesa até encontrar sua caneta, metálica, fria, pesada, e um papel grosso para acompanhá-la - o mesmo tipo de papel utilizado para suas anotações em Braille. Ele podia sentir o cheiro da tinta enquanto traçava letra após letra após letra, lentamente, pacientemente. Seus dedos sentiam as bordas do papel para que ele soubesse quando pular para a próxima linha.
    
    O recado, ao ficar pronto, foi parar na mesa de café, acompanhando os óculos de lentes vermelhas de James Bolden. O homem cego foi para o quarto, seguido apenas por seu sempre presente aroma de girassol.

Blind Bolden Blues #9

    Naquela noite, nenhum incenso queimava no apartamento. O ar lá dentro estava estagnado, quase rançoso, cheirando a umidade e decadência, e James Bolden se sentava mais uma vez diante de sua mesa. Dessa vez não havia ardósia nem papel de alta gramatura - em vez disso, haviam inúmeros pedaços de papel. O latão de sua caneta rapidamente aquecia-se até a temperatura da mão de Bolden, e apesar da boa sensação do metal contra sua pele, havia pouco conforto em escrever desta forma. 
    Muitos dos pedaços de papel foram desprezados para a lixeira debaixo da mesa, o mesmo lugar onde Diógenes, seu cão-guia, costumava dormir. Um papel após o outro após outro após outro, até que o homem cego confiasse em sua caligrafia. Sofreu para se recordar as formas de cada letra, mas estava determinado a cumprir sua tarefa. Depois de aproximadamente uma hora, Bolden colou um dos pedaços de papel ao presente cuidadosamente empacotado - cortesia de sua amiga Marianne - à sua esquerda; e, meia hora depois disso, um outro papel foi colado ao presente significativamente menor à sua direita.
    Havia música naquele ar decadente. James não cantava, nem dançava ou reagia à música de nenhuma forma, o que demonstrava sua preocupação. Ele estava ansioso. Ele precisava de tudo pronto a tempo. Se recostou em sua cadeira e estendeu os braços para o alto, alongando-os, antes de deixar escapar um suspiro. 

"Um olho no passado, um olho no futuro. Mas o que você vê, James Francis Bolden?" - deveria ter soado como um suspiro, mas saiu mais como um resmungo. 

Uma luz acendeu-se, e logo se apagou - uma luz que James não podia ver - e então o cheiro de tabaco e chocolate se espalhou no ar ao seu redor. Seus pulmões mortos puxavam a fumaça do cigarro, enrolado por suas próprias mãos, e depois sopravam-na de volta para fora pelas narinas. "Espero que não esteja me esquecendo de nada", ele pensou. Suas mãos cautelosas reuniu os presentes e os pôs dentro de uma mesma sacola de papel antes que ele se levantasse.


No seu caminho para o quarto, Bolden apanhou um livro em que tropeçara. Os dedos passearam pela lombada do livro, lentamente lendo o título em Braille, e um sorriso tímido ergueu os cantos da boca do homem cego. Ele decidiu recitar um trecho, diretamente de sua memória sem luz para seu apartamento vazio. 

"Extraio assim do absurdo três consequências, que são minha revolta, minha liberdade, minha paixão."

O livro foi arremessado pela sala novamente, em uma direção qualquer. Talvez Jim encontrasse alegria no absurdo de tropeçar novamente.

Blind Bolden Blues #1

    Era fácil utilizar a ardósia e a caneta, embora demandasse tempo; James havia tanto lido quanto escrito em Braille pela maior parte de sua vida. Alguns dizem que é mais fácil para aqueles que, como ele, nasceram cegos, já que não necessitam transicionar de uma linguagem visual para uma não-visual. A ardósia e a caneta eram consideradas antiquadas por aqueles a favor de avanços tecnológicos como softwares de leitura, e o Homem do Blues, James Bolden, fez um bom trabalho ao se adaptar a estes avanços - mas enquanto certas coisas se tornam menos populares, elas também se tornam um mistério para a maioria das pessoas. E é por isso que James estava sentado no escuro, cercado pelo cheiro de olíbano queimando em seu incensário. 

    Ele estava ali há horas, cuidadosamente escolhendo palavras antes de puncioná-las no papel grosso com seus instrumentos. Selecionar as palavras mais adequadas era essencial para uma mídia limitada -- não havia forma de se apagar as elevações no papel uma vez que estivessem feitas, e errar um único ponto poderia comprometer as informações de uma página inteira.

    Ao passo em que uma das páginas chegava ao fim, James colocava tanto a ardósia quanto a caneta de lado. Ele cuidadosamente leu a página inúmeras vezes, sentindo as elevações no papel de alta gramatura. Se sentiu satisfeito com sua própria escrita, e enfim recostou-se em sua cadeira.

    Bolden, o Cego, apanhou uma pequena bolsa de couro de uma de suas gavetas e pôs-se a enrolar um cigarro com o seu conteúdo. O tabaco, de alta qualidade, tinha uma sensação agradável às pontas de seus dedos, e seu cheiro tinha notas de chocolate -- um presente de despedida de um amigo em Nova Orleans.

    Dentro de alguns minutos, seu rosto sentiu o calor vindo de seu isqueiro. Ele soprou a fumaça em direção ao vazio por diversas vezes antes de retornar ao trabalho, prendendo a página recém-escrita a um fichário sobre sua mesa.

    O sentimento de frescor tomou conta do Brujah enquanto ele alongava seus membros mortos, até que ele finalmente se erguesse para tomar um banho e se vestir para o que quer que a noite tivesse reservado para ele.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Melancólico

    Eu bem tentei avisá-lo de que seria melhor ficar em casa. Sob a proteção do meu teto - não importa o quão decadente fosse a situação da minha casa naquela época - ele estaria seguro.

    Não insisti uma terceira vez. Eric partiu, e eu jamais o veria novamente. Por três noites ele se abrigou em minha residência. Cedi a ele meu próprio quarto, o único que estava limpo, até então, e dormi no quarto de hóspedes para que ele pudesse se sentir confortável. Mas não havia cama aquecida ou lençóis limpos nesse mundo que pudessem acalentar a alma melancólica do jovem Eric. Ele não era meu amigo, mas tínhamos um amigo em comum, e havíamos trocado algumas palavras em mais de uma ocasião; muito embora eu jamais venha a saber que opinião ele tinha sobre mim, sempre tive carinho por ele, ainda que pouco nos conhecêssemos. 

    Eric bateu em minha porta, trêmulo, silencioso, sujo de lama e encharcado pela chuva. Eu não perguntei o que tinha havido, pois não cabia a mim perguntar o que ele não se dispôs a dizer. Era necessário, primeiro, confortá-lo. Permiti que tomasse um banho quente e lhe dei roupas limpas, embora minhas melhores roupas ainda fossem um ou dois números maiores do que o de seu corpo esguio. Arrumei o quarto como pude enquanto ele se lavava de seus traumas e das marcas físicas que eles deixaram, e o guiei ao meu quarto quando ele se sentia limpo. Ele agora tremia menos, e até mesmo esboçou um sorriso.

    Me lembro de seu olhar fugaz enquanto me agradecia, sorrindo timidamente enquanto me agradecia pela estadia e se desculpava por aparecer sem avisar. Ofereci minha mão a ele, e ele a tomou. Não dissemos nada. Ele suspirou. Deixei-o sentado no sofá e preparei a melhor refeição que pude - não era muito. Minha despensa nunca foi generosa, e já havia muitos anos que eu não cozinhava, mas ele se demonstrou satisfeito com a atenção e o cuidado. E eu fiquei feliz com a satisfação dele.

    Esperei que ele terminasse de comer antes de contar-lhe sobre as condições de sua estadia. Eu não o perguntaria sobre o ocorrido, e ele não seria obrigado a falar. Mas ele poderia ficar por três noites, não contando a noite de sua chegada. Eu lhe alimentaria e lhe daria roupas limpas, e ele ficaria no meu quarto até sua partida. Em troca, tudo o que eu lhe pedia era sua sinceridade. Ele concordou, é claro.

    Fui tão hospitaleiro quanto pude, e embora tenha precisado me ausentar na noite seguinte, fiz questão de ser breve em meus assuntos particulares. Quando retornei, Eric já estava dormindo, mas havia me deixado um recado sobre a mesa de centro.

            "Espero que a gente possa se falar assim que possível. Quero te contar o que houve."

    Demorei a dormir, pensando no que poderia ter acontecido, e só acordei no início da noite com os sons que Eric fez enquanto procurava suas roupas com certa pressa pelo meu quarto. Saí do quarto de hóspedes e esbarrei nele no corredor. Embora ele supostamente quisesse conversar, não quis me responder quando eu perguntei o que estava acontecendo. Ele disse que voltaria para contar, mas que precisava sair naquele instante. 

    Insisti para que ficasse. Era mais seguro. Ainda havia tempo. Mas algo não permitiu que ele me ouvisse com clareza, e ele partiu pela porta da frente sem sequer se despedir. Ele só disse "me desculpa". 

    

    Eu esperei tolamente pelo seu retorno, o que - é claro - nunca aconteceu. Quem apareceu em seu lugar foi nosso amigo em comum, para me informar não que Eric havia desaparecido da cidade, e sim para me perguntar para onde ele tinha ido. O convidei para entrar e lhe ofereci um chá, que ele negou. Sentamos na sala, e expliquei o ocorrido. Ele me agradeceu pelo tempo que disponibilizei, e também por ter abrigado um amigo tão querido para ele em seus últimos dias na cidade.


    Agora tenho o fantasma de Eric caminhando em minha casa. Ainda ouço o chuveiro ligado quando passo pelo corredor, e também o som dos talheres na sala quando estou na cozinha. O recado permanece sobre a mesa de centro. Talvez algum dia ele apareça para contar o que houve.

sábado, 10 de outubro de 2020

Fuga

    Eu cheguei cedo no pub, naquela noite. Foi na última sexta-feira do mês de outubro, e o tempo estava começando a esquentar, embora tivesse chovido o dia inteiro - atípico para o período. Eu não ligava muito pra chuva, então só coloquei a minha jaqueta por cima da minha melhor roupa, que por si só não era exatamente uma roupa incrível; mas era a melhor que eu tinha. 

    Chequei meu celular inúmeras vezes enquanto estava no metrô. Primeiro pra saber se eu estava de fato indo na direção certa, e depois pra saber se ela havia respondido alguma das minhas mensagens. Nada. Eu normalmente evito mandar mensagens demais para os meus amigos com o receio de incomodar ou de parecer carente demais, mas eu realmente precisava que Octavia soubesse que eu estaria presente. Era a primeira vez que ela cantaria em público em vários meses, e a mensagem dela me convidando me deixou alegre, mesmo sendo um tanto impessoal, daquelas que as pessoas só copiam e colam. Eu disse que com certeza estaria presente e que mal podia esperar para vê-la e ouvi-la novamente.


            Aquela primeira canção jamais saiu dos meus ouvidos, mas eu ansiava por ouvir mais. 

    

    Eu precisava beber alguma coisa pra me sentir mais relaxado. Eu nunca fui de sair de casa de estômago vazio, mas o tempo que passei em reclusão me fez esquecer dos hábitos que eu tinha antes disso. Bebi apenas o suficiente pra parar de me sentir tão afoito, e logo achei um lugar de onde eu pudesse ver o palco sem precisar ficar perto demais de ninguém. 

    O ambiente era confortável, apesar das múltiplas conversas paralelas e risadas atravessando o salão. A banda se preparava no palco, afinando seus metais e se divertindo com pequenos improvisos. Pude contar seis deles no palco, mas nada dela aparecer. Era bem a cara dela. Sabia que ela faria uma entrada à altura de seu talento, e eu estava disposto a esperar para ver isso.

    O pianista começou a tocar sozinho. A iluminação mudou na mesma hora de uma forma dramática; eu sabia de qual mente tinha saído aquela ideia, e sorri ao me lembrar das luzes e do piano no apartamento dela. 
    O contrabaixo e a bateria entraram logo em seguida, ditando o ritmo da música logo após a introdução do piano, até que ela surgiu. 

                            E quando ela surgiu a luz dourada se refletiu na sua pele de cobre e no seu vestido de prata. 

    Octavia não precisava de um microfone pra que o pub inteiro a ouvisse. Todos os queixos caíram, inclusive o meu. E ela caminhou solenemente até o centro do palco, onde estava seu microfone, tal qual ela caminhou para iniciar o nosso dueto, a canção que embalaria nossa danse macabre, mas - ao contrário de todas as coisas mundanas, contudo - a voz dela se perpetuaria pra sempre na minha mente. 

    Cada nota que saiu de sua boca era impecável. O saxofone, o violão e o piano complementavam a harmonia, mas empalideciam perto do efeito que Octavia tinha nos ouvintes. Não se disse uma palavra por toda a duração da primeira música e, quando esta se encerrou, levou algum tempo até que surgissem os primeiros aplausos de todos nós, ainda atordoados com o que havíamos acabado de testemunhar. 

     Se as artes plásticas são como embelezamos o espaço e a música é como embelezamos o tempo, posso dizer que aqueles foram alguns dos minutos mais bonitos de todas as décadas que vivi. Outras músicas vieram, depois disso. 
    Agora as pessoas estavam mais confortáveis, passado o choque de ouvi-la pela primeira vez, e haviam pequenas conversas em sussurros aqui e ali. Enquanto isso, no palco, Octavia encantava pela visão e pela audição. Ela nunca fora uma mulher de trejeitos exagerados no palco, mas ela sabia exatamente como e quando se mover para chamar a atenção. Além dos gestos sutis e encantadores, era como se o olhar dela pudesse ver a alma de cada um dos presentes. E ela viu a minha. 

    Por alguns segundos o olhar dela e o meu se chocaram, e durante estes segundos ela cantou com um sorriso no rosto. E eu sorri também, claro. Ali, do cantinho em que estava, cantei alguns trechos da música junto dela. Eu, obviamente, não canto tão bem assim, e nem nunca tive essa pretensão. 

    Mas ouvi-la de novo me fez sentir confortável o suficiente pra querer cantar também. E isso me fez lembrar dos tempos em que o mundo era mais colorido pra mim. 
    Octavia tem esse efeito nas pessoas, de lembrá-las que o mundo pode ser um tanto mais bonito se eu me permitir que as luzes lá fora brilhem verde e rosa e azul sobre mim. Que não faz mal errar um tanto de notas no piano, que não importa se meu canto não é tão afinado, contanto que a canção me mova.

    Cada música que acabava era respondida com estrondosos aplausos. Ela agradeceu à banda, aos produtores e à dona do pub antes de sair, e eu não a vi mais naquela noite. Voltei pra casa debaixo de uma chuva fina e fria, embora o tempo estivesse quente, mas não liguei pras roupas molhadas. Andando pelos quarteirões mal iluminados, ousei assobiar um trecho de uma canção - a primeira de todas.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Sem título #8

     Há algum tempo eu apaguei um e-mail importante da minha caixa de entrada. Era de um amigo de longa data. Eu não abri o e-mail, mas sei do que se tratava: ele queria um reencontro. 

    A essa altura eles já devem ter se reunido, os meus amigos dos tempos de colégio. Não sei o que pretendem com essa reunião depois de tanto tempo, mas eu posso sentir os ventos da mudança soprando para eles na cidade grande. 
    Por aqui o ar continua estagnado, abafado. A torneira continua pingando na pia da cozinha, e eu já não me lembro se parei de contar o gotejar na casa dos 500 ou dos 600, então eu começo de novo, e de novo, e de novo. A umidade já estufou a madeira dos móveis, e as cortinas velhas parecem cada vez mais pesadas em meio ao mofo preto e aos ácaros e à poeira. 

    Eu não sei quanto tempo faz que apaguei aquele e-mail porque eu não sei que dia é hoje, mas me pego pensando em como seria se eu tivesse ido. Será que eles estão bem? Será que todos os meus três amigos estavam (ou estarão?) presentes? 
    A minha casa não sentiria minha falta, a menos que os ratos no sótão tenham desenvolvido algum apego. Já não há comida na despensa para o deleite de formigas e baratas, nem conforto proporcionado pelo ar condicionado. Eu me deparo vestindo as minhas melhores roupas e me sentindo elegante com elas, apesar dos pequenos buracos feitos pelas traças. Ninguém repararia, é claro. Eu sinto a textura do couro falso da minha jaqueta, que descasca e pulveriza ao toque na altura do ombro esquerdo. Eu percebo o aço enferrujando na minha fivela. Um mero detalhe. Me sinto elegante, quase poderoso. 

    Meus amigos ficariam felizes em me ver? Surpresos, talvez? Eu nunca fui o tipo de pessoa que mantém contato por muito tempo. Não sei se eles me reconheceriam, ou mesmo se eles esperariam (ou esperam?) que eu vá. Estou nervoso. Por que estou me arrumando? Eu nem sei a data da reunião. Mas não importa.

            Sair um pouco vai me fazer bem.

    Eu passo pelo meu espelho manchado e arranhado. Do pouco que posso me ver, eu realmente pareço bem. Não consigo ver o meu rosto sob os arranhões e manchas escuras, mas também não há muito o que eu possa fazer em relação a ele agora. A roupa parece boa. 


       Mas talvez eu esteja alguns dias adiantado. Ou algumas poucas horas atrasado. Talvez eu possa até ficar em casa e pensar em ir na próxima. Vai fazer eu parecer como se eu estivesse muito ocupado com algo importante.

domingo, 6 de setembro de 2020

Sem título #9

    Em outros tempos eu fui um homem diferente.

    Eu era uma pessoa bem relacionada, simpática, sociável. Eu tinha amigos - alguns dos quais já citei em meus textos - e eu era uma pessoa funcional. Eu trabalhava e trabalhava bem. 
    Algo aconteceu nesse meio tempo, e não sei dizer o que é e nem quando começou, mas eu me perdi de mim mesmo. É engraçado, porque todo mundo sempre disse que eu sou muito quieto, que eu era uma criança quieta.

    Mas eu me lembro que minha avó me dizia, sem tirar os olhos da televisão, que eu estava quieto demais. Eu não achava que estava quieto demais, pra mim eu só estava quieto "normal". Digo, se estou em silêncio, como eu poderia ficar mais em silêncio? Eu não sabia, mas aparentemente ela sabia.
    Tentava distraí-la conversando sobre alguma descoberta que tinha feito lendo as enciclopédias da estante empoeirada. Ela sorria, sem nunca se distrair do noticiário, e dizia que meu avô teria adorado me conhecer e ver a criança inteligente que eu estava me tornando, mas que ele era ainda mais quieto que eu. 


    Onde eu me perdi do antigo Rey, daquela pessoa que conseguia lidar com as próprias dores e ainda assim carregar um sorriso no rosto? Eu conseguia ser gentil e prestativo sem me tornar um fardo para os outros, e era motivo para reunir os amigos, não para afastá-los. 


    Agora a única coisa da qual sou rei é dos escombros e da ferrugem restantes da vida que construí e destruí.


Ainda me resta 

                alguma força

                            para me reerguer?

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Última luz

     Antes de eu me mudar pra essa casa, onze ou doze anos atrás, eu morava na capital, com seus prédios muito altos e a sua paisagem cinzenta. Foi lá que me desapeguei da claridade matinal e de suas cores vibrantes. Os detalhes parecem supérfluos quando você está lá, só existindo; só o básico merece atenção.

    Uma hora surge a necessidade de se distrair. Surgiu a necessidade de me distrair. Encontrei a distração na forma dos meus vizinhos. No apartamento ao lado morava um homem com seu filho; eu não ousaria chutar a idade de nenhum dos dois, sou péssimo com isso. Mas o garoto, nas poucas vezes em que nos víamos, sempre olhava pra mim sorridente. O pai o repreendia em silêncio e me olhava com dureza, normalmente puxando o garoto pela mão pra dentro de casa ou para as escadas. Deve ser uma dessas coisas de "não interaja com estranhos" que ouvimos quando somos crianças, eu acho. 
    Muito embora as paredes não fossem particularmente grossas e eles morassem no apartamento ao lado, eu pouco ouvia muitos barulhos de lá. Era raro ouvi-los conversando ou rindo. Não havia barulho de televisão ou videogames, nem música de nenhum tipo. Quando muito, mais perto da porta do corredor do que da parede, eu ouvia barulhos de panelas e pratos e talheres. O pouco diálogo era ininteligível para mim.
    Esse homem não me parecia ser uma pessoa rude. Ele me parecia ser uma pessoa cansada - e esse é um semblante que eu conheço bem. Nunca interagimos além de um ocasional "boa noite", normalmente quando eu estava saindo do meu apartamento, no começo da noite, e ele chegando no dele.

    Do outro lado do pequeno corredor morava uma mulher - parecia mais jovem que o homem do apartamento ao lado, mas eu não saberia dizer o porquê. Os dias dela pareciam começar ao anoitecer, assim como os meus. E ela recebia seus amigos e namorados e namoradas e era sempre muito sorridente. Ao contrário do apartamento ao lado, do apartamento dela eu podia ouvir gargalhadas e música e outras coisas. Mas não sempre. Em alguns dias não havia nada pra se ouvir, mesmo sabendo que ela estava lá. Ela parecia muito sorridente, mesmo depois dos dias de silêncio, menos quando ela olhava pra mim - e ela sempre olhava pra mim quando passávamos um pelo outro - o sorriso ia embora e o olhar fugia do meu. Ao contrário do outro vizinho, essa nunca me disse nem um "boa noite", ela apenas dava uma longa tragada em seu cigarro e seguia para dentro de casa.

    Eu, do jeito que eu sou, logo imaginei que o problema pudesse ser comigo. Por que alguém privaria seu filho de um curto diálogo com seu vizinho de anos? Por que alguém perderia seu sorriso ao encontrar alguém com quem nunca interagiu?
    À medida em que o tempo passava, eu me vi prestando menos atenção no básico e mais atenção nos detalhes, buscando maneiras de consertar o que eu nem sabia se estava quebrado ou não. Comprei um quebra-cabeças para o garoto, mas nunca entreguei. Também nunca entreguei o kit de O Pequeno Químico que planejei entregar no Natal - sem nome, sem nada, apenas largado na porta. Nunca entreguei o maço de cigarro mentolado para a mulher do outro lado do corredor. Em vez disso, fumei metade eu mesmo por pura ansiedade.

    Nunca fui bom nesse negócio de boa vizinhança, mas eu claramente me tornei muito bom em esquecer de mim enquanto me distraía devaneando sobre a vida alheia.


    Eu voltei no ano passado ao apartamento para buscar algumas coisas que imaginei estarem perdidas por lá. Com exceção da poeira e do cheiro forte de umidade impregnada nos móveis, nada mudou. Me sentei na poltrona que não foi comigo na mudança e acendi um cigarro mentolado. Por algum motivo os cigarros não foram estragados pelo tempo e nem pela umidade, e eu me engasguei duas ou três vezes com a fumaça enquanto me reclinava na poltrona perguntando que vida meus vizinhos teriam levado durante esses anos todos. Comi mais duas fatias da pizza que havia trazido comigo e dormi vendo a última luz do dia caminhar pelo alto da parede. 

    Acordei horas depois e decidi sair pra espairecer antes de juntar as coisas e voltar pra casa, ainda com minha cara amassada de sono e o cabelo bagunçado. Vesti o meu moletom e acendi outro cigarro. Enquanto eu descia o lance de escadas, pude ouvir outra pessoa subindo. Preparei meu melhor sorriso - que nessa ocasião também seria meu pior sorriso - para uma saudação silenciosa, mas cordial. 

    Ela olhou pra mim e sorriu. E o olhar dela se encontrou com o meu, sem fugir. "Oi! Nossa. Quanto tempo! Você não mudou nada." 
    Silêncio. Parabéns, Rey. Tudo o que eu consegui dizer foi "Uhhhh. Uh-huh." Ela, provavelmente constrangida (mas duvido que tanto quanto eu), me perguntou se eu fumava mentolado. Disse que tinha mudado de marca e de sabor há alguns anos.
    "É pra você", eu disse, entregando o maço com doze cigarros a menos pra ela. Ela riu e agradeceu. Disse que era bom me ver de novo.


    Eu não sabia o que dizer. Dei uma longa tragada no meu cigarro e tornei a descer as escadas. Passei a noite inteira me julgando pelo meu jeito idiota de interagir. Ou de não interagir, sei lá.
    Fui direto me deitar na poltrona quando voltei e não a vi mais. Também não vi o garoto sorridente, que a essa altura já era um adulto (espero que ainda sorridente), nem seu pai com o olhar duro. Esperei a última luz caminhar pela parede mais uma vez antes de recolher minhas coisas e ir embora pra casa.


E foi bom sentir o cheiro de cigarro no corredor.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Torpor

     Eu não sei que dia é hoje, e não me importo o suficiente pra olhar o calendário, nem mesmo o celular ou o computador. É só mais um dia de cansaço. É só mais um dia em que levantar da cama pareceu uma decisão péssima a se tomar. 

    Eu limpo o vidro embaçado depois de um banho quente que falhou em me revigorar. Mais uma vez eu contemplo meus olhos cansados e os círculos escuros que os rodeiam. Sem sorriso, dessa vez - nem amarelo, nem de nenhum outro tipo. Devo ter deixado meu sorriso por aí, em um dos quartos empoeirados que eu não visito mais. Não me lembro da última vez que tive companhia aqui dentro que não fosse a minha, o que é engraçado; eu tendo a acreditar que não sou uma boa companhia pra ninguém, então acostumei a ser a minha própria.


    E, agora que não tolero nem a minha própria companhia, o que fazer?


    Eu não acendo mais as luzes porque meus olhos já se acostumaram. Eu busco sensações novas interagindo sempre do mesmo jeito com as mesmas coisas de sempre. Vagueio pelo corredor da casa mais uma vez, passando meus dedos pelas paredes. Abro a geladeira mil vezes, sempre na esperança de que alguma coisa surja magicamente e me desperte alguma alegria nos 20 minutos em que eu passaria devorando-a. Não surgiu. 
As cortinas grossas e as tábuas sobre a janela não me deixam saber se é noite ou dia. Eu escolhi não me preocupar com isso há muito tempo, mas não saberia dizer quanto tempo faz porque não sei que dia é hoje. 

    Eu decidi ignorar o tempo. A intangibilidade do passado me machuca e a incerteza do futuro me aflige. 
Por isso, eu escolho viver além do badalar dos sinos, do tique-taque do relógio, do gotejar na torneira da cozinha, dos raios brilhantes de sol e do cintilar das estrelas no céu. Eu estou aqui, além da passagem das estações, das datas comemorativas, dos fios de cabelos brancos que surgem. 

    Com os meus olhos cansados e o meu sorriso perdido, eu escolhi ser imortal e morrer milhões de vezes o tempo inteiro.
    Eu sou o gato dentro da caixa, prestes a ser envenenado (ou não), e o cachorro que nunca sente fome até que o sino toque. Infinitésimas partes do infinito, todas condensadas em uma só. 
                Uma ferida que não fecha.
    Uma serpente que nunca troca de pele para virar um dragão, porque não importa quanto tempo passe 

                                                nunca é tempo o suficiente.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Colérico

    Não sei quando comecei a escrever. Talvez tenha sido na adolescência, talvez pouco antes disso. Mas sempre escrevi pra mim. E sempre evitei escrever para os outros porque a escrita pra mim nunca foi sobre passar uma mensagem adiante, mas sobre colocar os pensamentos em ordem. E, à medida em que eu colocava minha cabeça em ordem, eu comecei a me sentir confortável para mandar uma ou outra mensagem. 

    Eu não sabia o que era um blog até minha amiga Vanessa me dizer que eu deveria ter um pra assustar as pessoas com os absurdos que saem da minha boca. Me sinto muito velho dizendo isso, mas foi assim que aconteceu. E ainda tenho que ouvir que eu digo absurdos. Ela era uma boa amiga, apesar dessa forma estranha de expressar carinho e preocupação. E aí, anos depois, eu sentei na frente deste mesmo computador pra criar o tal blog, depois de muito ler a respeito.

    Mas eu não tinha um nome pra ele. E eu me lembrei de uma noite que passei com Vanessa. 

    Eu e Vanessa nos conhecemos como jovens adultos festeiros e ainda sem saber muita coisa sobre o que era ser adulto. Nossos amigos em comum diziam que éramos um casal perfeito - e nós reagíamos com cara de nojo. Talvez fôssemos uma ótima dupla, disso eu não discordo; mas casal? Improvável. O que nos unia era principalmente a nossa diferença na forma de pensar. Vanessa era sempre muito extrovertida, muito decidida, muito colérica. E eu...bem, eu não. 

    Mas nessa noite, em específico, ela estava mais parecida comigo: introspectiva, silenciosa. Dividíamos uma mesa na Calvarium, uma boate que íamos vez ou outra, e a luz fraca e indireta do lugar tornava mais palpável a dor que ela sentia. Perguntei duas vezes se ela queria falar a respeito do que tinha acontecido, só para ser respondido com goles silenciosos do conhaque barato que ela sempre comprava. 

    Ela quis acender outro cigarro, mas eu segurei a mão dela. Primeiro com certa pressa, como quem cobra uma resposta. Depois, com carinho. E ela olhou pra mim e me disse as palavras mais doces que poderiam sair de sua boca naquele momento: "Não me enche, Albert." Eu não enchi. Mas também não soltei a mão dela.

    E ela olhou pra fora, pela janela, e eu olhei logo em seguida. A lua brilhava cheia no céu, mas não como de costume. Ela brilhava em um tom suave de vermelho, e foi o suficiente para nos manter em silêncio por tanto tempo que não sei quanto tempo se passou. Ela não soltou a minha mão; na verdade, ela a segurou de volta.


    Eu ainda não sei o que aconteceu com ela naquele dia. Quando ela sumiu, eu soube que a única forma de eternizá-la seria sob uma lua vermelha. Brega isso, né? Eu sei. Mas é brega de uma forma divertida. De uma forma que a faria olhar com desgosto e revirar os olhos. Então eu sei que, de uma forma ou de outra, ela está aqui de verdade.